quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

RessacaS

Ela acordou. Ele não conseguiu dormir. Não sabia ao certo se cedo ou tarde. Estava totalmente consciente do sol se levantando, mesmo por detrás das paredes fechadas e janelas pesadas. Tinha a boca seca, muito seca e mesmo salivando muito não conseguia matar sua sede... precisava de um copo d'água urgentemente. Sua barriga parecia um ser autônomo, movia-se em completo descaso e desapego pelo seu hospedeiro...
Levantou-se! Ao caminhar até a cozinha, notou os vestígios da véspera... É, iria ficar ainda um bom tempo deitado, derrotado, entre os despojos da noite passada. não tinha tempo para isso, a sede fez com que fosse até o outro cômodo sem pensar na cena com que havia se deparado. Passou em revista o quarto com um movimento mínimo de cabeça. Talvez assim não enfurecesse inda mais os tornos que lhe apertavam as têmporas. Leda ingenuidade.
Bebeu do líquido como se ele fosse o mais precioso do universo... A mochila jogada em um dos canto ainda lá, o casaco ao pé da cama, carteira e chaves sobre a cômoda... como era boa aquela água! Sentiu uma pontada na cabeça, enquanto caminhava pela casa... talvez fossem as lembranças fazendo força p'ra chegar. Deu graças pelo volume que o estava incomodando no bolso da calça. Não precisaria se mover para procurar o celular.
Ela passou pela sala e viu suas sandálias... estavam arrebentadas de tanto dançarem. No quarto, viu as roupas esparramadas pelo chão... ainda bem que não trabalharia hoje, por que precisava "limpar aquela bagunça". Achou graça na escuridão que encobria a desordem do aposento que lhe servia de quarto e, na maior parte do tempo, também de sala.
Pegou no vestido. Notou uma mancha púrpura no traje tão belo... Mas o escuro não escondia a mancha da camisa, muito próxima do rosto, visível mesmo na penumbra. "Será que isso saí?", pensou ela. "Merda”, pensou ele.Enquanto isso, os flashes da noite passada começavam a brotar naquela cabeça confusa. Começou a pensar na noite passada. Será que era noite passada? Ele ainda não havia dormido...
A cada passo que dava, cada objeto que pegava, sentia uma nova pontada... sim, eram os momentos vividos sendo novamente reproduzidos, ainda que recortados pela ótica ébria da dona das lembranças. Resolveu tentar traçar uma linha cronológica dos acontecimentos, mas sem sucesso. Os cacos de noite continuavam caindo sobre sua cabeça no compasso sincopado do pulsar de sua testa... A boca pedia mais água... a boca fazia mais água! Sentia-se mal e lembrava... aí, sentia-se pior ainda... "como podia ser tão burra, como podia ter-se deixado levar tão longe?!". "Dançar numa mesa de bar?!" Não era disso, ter ressaca... Mas as circunstâncias eram de todo atípicas, e ele não era, de longe, o mais alterado naquela noite.
De um salto corre atônita para o banheiro. Súbito, um arroto incontrolável trouxe à sua boca um gosto ácido e quente. É que o mal da noite anterior já subia pela goela e precisava ser expurgado no lugar certo, para não causar-lhe ainda mais transtorno... Todo o corpo se contraiu para evitar algo que poderia ser uma desgraça naquela situação. Sabia que dificilmente teria como alcançar o banheiro naquele estado. "Vinho barato dá nisso!!", praguejava ela mentalmente. “Vinho barato dá nisso!!” pensou imóvel para despistar as dores.
Agora doía-lhe a cabeça e o estômago. Na boca, um gosto ácido.No rosto refletido no espelho, a vergonha... e as cenas?! Que inferno eram as cenas voltando... era tudo tão ridículo! Não pode evitar um sorriso à idéia de preferir o escuro a se ver, ou ser visto, naquela situação. "Ficar justamente com aquele sujeito?!" Só assim mesmo para ficar com aquela louca... Onde já se viu, dançar em cima da mesa... Achava que isso só acontecia em histórias de bêbados!!!(...)
Chorou! Chorou defronte ao espelho, procurando seu melhor ângulo...
Riu! Riu sem se importar com a dor que martelava sua testa, agora. Não havia ângulo bom naquela história.
Chorou mais ainda! Agora vinha uma dor no peito, uma angústia, vontade de gritar...
Não tinha como não rir daquela história...
Não tinha quem a acudisse, não tinha quem a apoiasse, não tinha quem a amasse... E quanto mais ria mais tinha vontade de rir... estava sozinha num banheiro frio e já sentada no chão, encolhida, sofrida... Sozinho, no escuro, encolhido com a puta dor de cabeça. E rindo. Lembrou-se da sua condição de moça solteira, vivendo sozinha na cidade grande. Lembrou-se de sua condição de homem sozinho morando na cidade grande. Ela não tinha platéia nesse momento... Quem dera tivesse platéia naquele momento!Ela era só! Ela se garantia sendo só. Ele era só! Ele se tranquilizava sendo só.
E pensando dessa forma, levantou-se, lavou o rosto, a boca, olhou-se no espelho e prendeu o cabelo. Sentou-se na beira da cama e passou os indicadores pelas têmporas. Pegou um analgésico p'ra aplacar a dor insuportável que era agora constante. Engoliu em seco o comprimido. Como sabia que era só tomar um café para melhorar da dor de cabeça, pôs-se a isso. Pôs-se então a fazer as tarefas domésticas e a limpar a sujeira. "O trabalho braçal enobrece o homem e ajuda a esquecer a noite passada", pensava ela... Dessas noites muito se esquece mas devem ser lembradas...” pensava ele
E repetindo isso como um mantra, foi-se esquecendo, esquecendo, apagando e apagando... até não lembrar de mais nada!
E com isso em mente, foi tentando relembrar a noite, montando e montando, lembrando e lembrando, até não esquecer mais nada!